Por Antonio Zanette
A temática dos precedentes perpassa todo o sistema jurídico. É de suma importância o seu estudo em razão das modificações inseridas no Código de Processo Civil, principalmente no tocante à vinculação horizontal e vertical dos precedentes emanados pelas cortes supremas (Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça e Tribunal Superior do Trabalho), para que se alcance a previsibilidade do Direito e a segurança jurídica no Estado Constitucional.
Piero Calamandrei, em seus ensaios sobre Diritto Agrario e Processo Civile, alertava para a necessidade de uma justiça especializada em razão da importância e da relevância da agricultura para a economia. Por duas razões: a primeira é econômica, sobremaneira porque o agronegócio é responsável por quase 30% do produto interno bruto (PIB) nacional; a segunda decorre da necessidade de ser preservado o interesse público, pois se destruída a unidade da empresa agrária, em razão da propriedade que a compõe, estar-se-ia desfazendo um meio de prover alimentos e riqueza para toda a sociedade.
Alcançando os dias atuais, o agronegócio tornou-se mola propulsora da economia brasileira e da estabilização da paz social, figurando os precedentes como moinhos de vento em prol do desenvolvimento não só do Direito, mas também do próprio agronegócio.
Deste modo, nos preocuparemos em responder algumas perguntas ao longo do presente artigo: a primeira delas é se devemos repensar o método pelo qual o Direito é produzido e efetivado; a segunda é sobre o modelo de cortes de nosso País e quem tem autoridade para dar a última palavra no Estado Constitucional; e, por fim, por qual razão os precedentes constituem direito vigente, têm força vinculante e devem ser respeitados à luz do agronegócio.
Inicialmente é necessário rememorar que a doutrina italiana do Século XIX conflagrou que a linguagem é porosa, dotada de equivocidade, pois a comunicação corre o risco de ser sempre imperfeita e as outorgas de sentido dependerão da colaboração de esforços de duas ou mais pessoas, sendo que a mensagem é produto de uma adscrição de significado ao texto, dentre os significados possíveis.
Assim, as normas não se confundem com os textos, pois o Direito sofre de uma dupla indeterminação: a uma, pois os textos são equívocos; a duas, porque as normas são vagas por distintas razões, entre elas, a ambiguidade, a complexidade, a implicabilidade, a superabilidade e a abrangibilidade dos enunciados textuais.
A equivocidade dos textos é uma decorrência de diferentes métodos de interpretação, orientações, valorações, escolhas de significados e inclinações, sendo a norma o instrumento pelo qual se visa reduzir essa equivocidade. A vagueza das normas tem a ver com o seu alcance, uma vez que tem – conforme H. L. A. Hart – a textura aberta, sendo de extrema necessidade a atuação do intérprete para verificação da indeterminação normativa e a precisão do seu alcance, de modo que isso só se dará a partir da outorga de sentido, através da interpretação e posterior aplicação do Direito, para que se tenha o seu desenvolvimento conforme a realidade e necessidades sociais.
A partir da verificação da necessidade de atribuição de sentido aos textos legais, a interpretação passou a ser a função das cortes supremas: “Embora todos os juízes interpretem a lei, é a Corte Suprema quem define a sua interpretação e, nestes termos, atribui-lhe sentido”. Essas cortes supremas é que têm, portanto, a autoridade de interpretar por intermédio de decisões estáveis, passando a orientar as relações sociais e promovendo a segurança jurídica em nome do desenvolvimento do Direito.
Em síntese, a atividade de interpretação deverá seguir uma linha lógica (justificação interna) e uma linha argumentativa (justificação externa), de modo que a primeira atine à ausência de contradição e à completude da justificação, enquanto a segunda se dedica ao campo da argumentação, no qual serão dadas razões para sustentar as decisões e as escolhas, exigindo-se então, no seu resultado, coerência e universabilidade.
Quanto à necessidade da interpretação ser coerente, deverá ser “um conjunto, internamente consistente, formal e materialmente, de princípios e regras” amalgamados por “princípios fundamentais comuns”.
Em relação a ser universalizável, dentro da linha de MacCormick, de que não há justificação sem universalização, a decisão deverá ter amplas condições de ser replicável para os casos futuros, idênticos ou semelhantes.
Só é possível pensarmos em uma organização judiciária que bem julgue as questões ligadas ao agronegócio no momento em que temos a definição da autoridade interpretativa, a partir da função do Processo Civil no Estado Constitucional, que é a de prestar a tutela adequada, efetiva e tempestiva dos direitos.
Se a interpretação é necessária para que o direito se torne cognoscível, sobretudo no âmbito do agronegócio, deve-se perceber que a norma não existe sem juiz e o texto não se confunde com a norma. Se isso é verdade, as cortes têm que ter outra função que não só a de controlar as decisões, mas também de guiá-las com função proativa, definindo o significado do direito e velando pela promoção da segurança jurídica.
As cortes devem ter uma atuação prospectiva, preocupadas não em consertar o passado, mas em construir o futuro. Por essa razão os precedentes estão intrinsecamente ligados ao império do Direito.
Como função do Processo Civil no Estado Constitucional, quem possui autoridade para dar a última palavra são as cortes supremas, por meio de precedentes, ou seja, o Superior Tribunal de Justiça em relação à interpretação da legislação infraconstitucional e o Supremo Tribunal Federal em relação à interpretação da Constituição Federal, com o objetivo de dar unidade ao Direito. Com isto, “o precedente judicial constitui fonte primária do Direito”, aplicando-se plenamente ao Direito Agrário e do Agronegócio.
Notadamente no âmbito do Direito Agrário e do Agronegócio a questão se acentua, pois deve-se observar uma ética na aplicação dos precedentes em razão da necessidade de se resguardar o setor econômico mais importante do nosso País. A par disto, podemos verificar, em síntese apertada, que o Superior Tribunal de Justiça vem analisando com cautela algumas temáticas correlacionadas ao agronegócio, como no contexto dos contratos agrários, recuperação judicial do produtor rural, entre outras.
Destaca-se, nessa linha, o paradigma do STJ que afastou o Estatuto da Terra em caso no qual a controvérsia versava a respeito do direito de preferência por arrendatário, que era empresa rural de grande porte, dando plena eficácia ao art. 38 do Decreto n° 59.566/1966, que restringiu a aplicabilidade das normas protetivas do Estatuto da Terra exclusivamente a quem explore a terra pessoal e diretamente, como típico homem do campo.
Uma proposta para a ordem civil que ambicione a unidade do Direito, tornando-o legítimo para a promoção da tutela dos direitos, passa por haver cortes dotadas de autoridade para interpretar e dizer o direito a partir de um duplo discurso, tanto em uma dimensão geral, quanto em uma dimensão particular, ou seja, para a sociedade em geral, bem como para o caso concreto, buscando a previsibilidade do direito e o seu desenvolvimento, a partir do respeito aos precedentes obrigatórios.
Portanto, cortes supremas preocupadas em dar unidade ao sentido normativo dos enunciados constitucionais e legislativos, mediante precedentes, acabam por tornar o Direito coerente, tendo em vista a sua missão de regular a sociedade, inspirando confiança entre as pessoas e as instituições, promovendo a igualdade e a segurança jurídica.
Deste modo, os precedentes devem ser compreendidos enquanto fonte do Direito Agrário e do agronegócio, com o propósito de trazer previsibilidade e segurança jurídica adequadas para aportar investimentos que gerem renda e emprego em um País continental como o Brasil.
Notas
1 CALAMANDREI, Piero (1889-1956). “Diritto Agrario e Processo Civile”. In CAPPELLETTI, Mauro, Opere Giuridiche. Napoli: Morano editore, 1965. Vol. I. pp. 279 a 294.
2 A contextualização da expressão com o tema dos precedentes é de MITIDIERO, Daniel. “Processo Civil” (2021). 2a Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022.
3 MARINONI, Luiz Guilherme. “O STJ enquanto corte de precedentes” (2013). 3a edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. P. 79.
4 Ibidem.
5 Neil MacCormick, em “Rhetoric and the Rule of Law”, p. 99, afirma “there is no justification without universalization”.
6 MITIDIERO, Daniel. “Precedentes: Da persuasão à vinculação” (2016). 4a edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. P. 85. Ainda, nesta linha, ZACCARIA, Giuseppe. “La giurisprudenza come fonte di Diritto: Un’evoluzione storica e teorica”. Napoli: Editorale Scientifica, 2007. P. 7-21. E a respeito do problema do precedente judicial como fonte do Direito, TUCCI, José Rogério Cruz e. “Precedente judicial como fonte do Direito”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
7 A esse respeito, ver STJ, REsp 1.447.082/TO. 3a Turma, j.10/5/2016, Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, p. 19: decisão que desconstituiu o Estatuto da Terra às grandes empresas rurais, mencionando que seria aplicável tão somente ao agricultor que cultiva a terra como o “homem do campo”, prevalecendo a autonomia privada das partes.
8 Idem.